

Priscila Lopes
Talvez, muito provavelmente, escritora.
domésticos
Não demorou para que se descobrissem incompatíveis. Ele, que era todo extrovertido, todo gurizão, todo boa praça. Ela, que era toda de ninguém, toda esticada na dela, toda bichana. Ele, que era todo bicho grilo, todo sem pedigree, na raça, sol-a-sol; Ela, que era toda puro sangue, toda siamesa, sombra e água fresca. Antes era fácil até: somaram-se. Um tinha aquele quê que o outro admirava e queria pra si. Andavam soltos e sorridentes - e embora um do outro caçador, não temiam: encaravam-se, quase desejando os dentes no pescoço. Depois rolavam pelo chão, pelos lençóis, pelo varal – quase voavam, esses animais! Mas de repente, dessa admiração que era de um para o outro, começaram a se sentir grandes. E tão grandes ficaram que o corpo passou a ocupar o espaço que era do outro, e a zombar do que o outro não era, não podia, não sabia. De repente ficou muito engraçado ser tudo aquilo que o outro dizia, e ver que o outro não era nem metade do que esse queria. Esse, que era ela, de vez em quando ele, que intimamente começou a fazer exigências, e trocar o que é pelo que não é, e achar melhor assim; o outro, que era ele, quando nunca ela, que achava que podia receber mais em troca, que já se doara o bastante, que se sentia meio cão sem dono, na sarjeta. E depois, ninguém mais podia chegar perto dos pertences do outro que o outro avançava. Não se podia mais cheirar o pescoço do outro que o outro rosnava. Não se podia mais nem conviver na mesma casa, e por isso os donos - que ávidos assistiam ao desenrolar da novela, e haviam acreditado num final feliz - decidiram se separar. Ela ficou com ele, que não soltava muito pêlo. Ele ficou com ela, que não exigia tanta atenção. E os dois ficaram sozinhos, em kitnets, queixo sobre o parapeito da janela, pensamento pensando: pelo menos eu tenho o meu canto.